O critério racial fere a isonomia. Que os
militantes da causa negra não se iludam: projeto das cotas não passa de cortina
de fumaça
Não fosse
o componente racial no projeto de lei aprovado pelo Congresso - que destina 50%
das vagas das universidades federais a alunos que cursaram o ensino médio em
escolas públicas, a ser distribuídas respeitando a divisão racial de cada
estado -, eu poderia dar-lhe o benefício da dúvida. Com o componente racial,
sou contra
A família
do meu pai chegou ao Brasil, com uma mão na frente e outra atrás, no começo do
século XX. A da minha mãe aportou aqui fugindo do nazismo. Em ambos os casos,
portanto, muito depois da abolição da escravidão. Caso a lei das cotas raciais
e econômicas nas universidades federais seja sancionada, fico imaginando o que
eu - e milhões de brasileiros com histórico parecido - diria ao meu filho se
ele fosse excluído de uma vaga em universidade federal em benefício de um negro
ou indígena com pior desempenho acadêmico. Não haveria o que dizer.
Pessoalmente, acredito que o critério racial fere a isonomia, que é a base da
democracia, e tisna o republicanismo com sectarismo. Racismo sempre é ruim,
tanto o movido por ódios quanto o por intenções nobres. Espero que os
militantes da causa negra não se iludam: esse projeto não é uma grande vitória,
mas uma cortina de fumaça. Em primeiro lugar, porque o racismo brasileiro não é
causado por políticas governamentais que precisam ser revertidas, como era o
caso americano, mas sim por atitudes de foro íntimo de uma parte dos nossos
concidadãos. A concessão de cotas não mudará esse preconceito e corre-se o
risco de exacerbá-lo. E, segundo e mais importante, porque o efeito dessa lei
não passa de migalha. Reportagem da Folha de S.Paulo calculou que o
número de vagas reservadas nas universidades federais aumentaria em 70 000 com
as cotas. A maneira de tirar milhões de negros da privação é melhorando a qualidade
do ensino básico.
Não fosse
o componente racial no projeto de lei aprovado pelo Congresso - que destina 50%
das vagas das universidades federais a alunos que cursaram o ensino médio em
escolas públicas, a ser distribuídas respeitando a divisão racial de cada
estado -, eu poderia dar-lhe o benefício da dúvida. Com o componente racial,
sou contra.
Há bons
argumentos favoráveis e bons argumentos contrários à concessão de cotas a
alunos da rede pública de ensino, sem discriminação por raça. Os favoráveis: a
medida aumenta o acesso de alunos de baixa renda à universidade, promovendo
equidade social. Também pode fazer com que pais da classe média baixa tirem
seus filhos de escolas particulares e os matriculem em escolas públicas. A
pesquisa sugere que esse público de maior renda e instrução deverá gerar
melhoria de qualidade na escola pública. Os argumentos contrários: além de
ferir a meritocracia, o que conceitualmente é lamentável para uma instituição
de ensino, a chegada de alunos despreparados às universidades federais poderia
ameaçar sua qualidade, acabando com boa parte da pouca pesquisa que o país
produz.
O tempo
dirá se os efeitos negativos vencerão os positivos. É uma questão mais empírica
do que opiniática. Se essa lei for mais um prego no caixão das universidades
federais, é importante notar que o eventual óbito terá sido caso de suicídio
assistido, não assassinato. Agora reitores e professores protestam contra essa
lei específica, mas as sementes do mal foram plantadas por eles. Porque nas
últimas décadas as universidades federais se protegeram tanto, amealharam tanto
dinheiro dando tão pouco em troca à sociedade, que hoje não têm mais autoridade
para esperar que essa sociedade as proteja.
A marcha
da insensatez começou com o artigo 207 da Constituição, que declara a
“indissociabilidade entre ensino e pesquisa” nas universidades. Já seria
estranho ter uma lei qualquer defendendo que o separável é, em realidade,
inseparável, mas consagrar isso na Constituição do país é estapafúrdio. O
resultado prático dessa lei é que 90% dos professores das federais são
remunerados como se fossem pesquisadores em tempo integral, o que a grande
maioria não é. Se quase todos são tratados assim sem que precisem produzir
pesquisa, obviamente há pouco incentivo para que se faça pesquisa de ponta. A
maioria dessas instituições é pouco produtiva. No ranking mundial de
universidades do Times londrino, não há nenhuma universidade federal entre as
400 melhores do mundo. Ainda há grandes professores e pesquisadores, mas as universidades
federais exigem que toda a rede seja tratada de forma homogênea, gerando dupla
injustiça: não valoriza os que merecem e sobrevaloriza os que nada ou pouco
produzem. Esses últimos ainda fazem greves, como a de agora. Essa estrutura
torna o custo das universidades federais estratosférico: seu aluno custa quase
seis vezes mais do que o aluno do ensino fundamental, o mais caro entre todos
os países medidos. Finalmente, as federais resistiram e continuam resistindo a
planos de expansão de vagas. Fazer universidades novas em zonas desprestigiadas
pode, mas aumentar agressivamente o número de alunos nas universidades
“nobres”, isso não. Assim, o orçamento do Ministério da Educação destina 23,7
bilhões de reais às federais e elas matriculam apenas 763 000 alunos, menos de
15% das matrículas totais do setor. Se a instituição das cotas tiver efeito
adverso sobre a qualidade das federais, é provável que haja mais um êxodo de
matrículas para o setor privado, fomentando o desenvolvimento de instituições
de ponta nesse setor. Daqui a um tempo, não será surpreendente se alguém
sugerir extinguir as federais e transferir todo o seu orçamento para boas
universidades privadas ou estaduais. Todas as leis e manobras que deveriam
garantir a opulência e complacência das universidades federais terão causado
sua implosão.
Na
escola, havia um colega que não conseguia acompanhar o ritmo na maioria das
matérias e era vítima de gozação da turma. Um dia, ao receber mais uma
provocação de outro colega que tampouco era grande aluno, ele se revoltou: “Tu,
não! Vai descolorir o boletim antes de abrir a boca”. O Ideb, o Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica, que dá uma nota de zero a 10 para a
qualidade de todas as escolas públicas do Brasil, mostra que o boletim do país
é um mar de notas vermelhas.
O
Ministério da Educação, ao divulgar os resultados, enfatiza o (pequeno)
progresso e o fato de 77% dos municípios terem atingido a meta. A verdade é que
não há razão para contentamento. A média cai de 5,0 no 5º ano para 3,7 ao fim
do ensino médio. Quanto mais tempo nosso aluno permanece na escola, pior é o
seu desempenho. As metas do Ministério da Educação são ridículas, mais uma
herança maldita do preclaro Haddad. Estipulam que, em 2021, o Brasil tenha o
mesmo desempenho dos países da OCDE... em 2006! Isso não é meta, é uma
confissão de derrota. Até 2021 esses países terão evoluído muito, e os
problemas de competitividade do Brasil, causados pelo nosso apagão escolar,
continuarão terríveis.
Como
sabem os leitores desta coluna, só acredito que teremos mudanças significativas
quando a população cobrar educação de qualidade. Políticos só atacarão o
problema da educação com o devido empenho quando o mau resultado lhes custar
votos. O Ideb 2011 pode ser um instrumento valioso nesse processo, porque pela
primeira vez temos uma série histórica que permite avaliar o desempenho de
redes municipais em um mandato inteiro de prefeitos, justamente em ano
eleitoral. Para dar minha pequena colaboração, as tabelas aqui reproduzidas
mostram, entre as cidades com mais de 100 000 habitantes, quais as redes
municipais que mais melhoraram e as que mais pioraram no país, e também aquelas
que obtiveram os melhores e os piores resultados absolutos. Em twitter.com/gioschpe
você encontra os dados completos do Ideb por município, por estado e pelo país,
desde 2005. Espero que ajude na hora de votar para prefeito.
Fonte:Revista Veja